terça-feira, 10 de agosto de 2010

Morte em vida

de Cecílio Purcino

Há tempos atrás eu era doente e não me sabia,
Era meu coração que tinha pouca alegria.
Os ossos? Esses já não me cabiam,
Já não resistiam nem mesmo aos cálcios que lhes faltavam.
O fígado? Já não era mais como Prometeu.
O pâncreas? Estava completamente básico,
Os pulmões não tinham mais por quem respirar
E o cérebro já não tinha nem mais uma lembrança sequer.
Tudo já estava em plena morte.

Primeiro, veio o cansaço dessa vida cotidiana,
Depois o êxtase imprevisível do prazer e das loucuras
E depois a falta de ar nos pulmões
E o horror de não poder mais respirar.
Essa era a parte que mais me doía,
Não ter por quem respirar.

Sem ti? Nada senti.
Nem percebi quando os órgãos
Pararam de funcionar
E o coração virou pedra,
Barro ou cinza talvez,
E parou de bater.
Fiquei morto em vida,
Zumbi.

Ia aos bares para viver e mais nada.
E levava para casa o pouco ar que sobrava,
Preso no cérebro e nos brônquios.
E com isso, tentava eu ser feliz,
Mas o coração, esse me faltava.

Há muito tempo atrás eu fora doente e não me sabia.
Não sei se era câncer, tuberculose ou rinite, não sei,
Mas há muito tempo fiquei doente e não sabia.
Os sintomas me davam agonia.
Era falta de ar e dores nas costas
De levar meu passado amarrado nos pulsos.
Eram dores nas pernas de carregar meus despojos
E febre alta para com os corpos alheios.

E essas únicas lembranças eram
O único ar que me sobrava,
Como fumaça saindo do tabaco,
E pondo manchas na parede.

Mas hoje, algo me faz bem
E me sinto melhor,
Veio como morfina na veia
E calcificante nos ossos,
Amoleceu meu coração outra vez
E o deixou virar um só diamante.
Fez com que meus pulmões tivessem
O ar necessário para que eu voltasse a
Respirar tranqüilo e em silêncio,
Como criança dormindo ao fim da tarde

Meus órgãos voltaram a trabalhar
E o meu cérebro a fixar as lembranças,
E tais lembranças que para mim é tudo.
Hoje, eu as vivo com uma nitidez que serra os meus olhos,
Eu as vejo com o coração e as respiro com o peito,
Para que eu não esqueça os
Momentos em que vivemos juntos.

E depois de ter passado tanto tempo doente,
Parado, estático nessa minha
Cotidiana vida de aventureiro,
Sei o quanto é bom ter você
A passar pelos pulmões,
Percorrendo o miocárdio
E parando no hipocampo de
Minhas memórias.

E esse ar de que tanto falo e respiro,
São as minhas lembranças que tenho por ti,
Latejando nas minhas têmporas.

Esse ar veio do Sul e ao mesmo tempo em
Que me sinto aquecido por ele,
Me fazendo dormir em teus braços,
Ele me parece frio e racional.
E talvez por eu ter ficado tão doente
Há tanto tempo, essa foi a virtude
Que devo já ter me esquecido.

Já não me cabe mais a razão no corpo nem na alma,
Já não me cabe a razão nas palavras,
Já não me cabe a razão em mais ninguém
E mais nada,
Apenas vivo,
O mais intensamente,
O mais fervoroso possível,
Tentando fazer com que todo esse frio ar
Me aqueça os pulmões e
Me faça esquecer que um dia
Eu quase morrera.